Como vimos no capítulo anterior, a década de 60 foi marcada no Brasil por um forte sentimento nacionalista e desenvolvimentista. A intensa produção cultural no país refletia esta atmosfera, aglutinando artistas e intelectuais em questionamentos em torno do “popular”, em termos de conscientização e participação das massas no processo social e político do país.
A arquitetura de Oscar Niemeyer fez de Brasília o centro das apostas para o desenvolvimento nacional, e a Fundação Cultural de Brasília, dirigida por Ferreira Gullar, ampliou os horizontes do poeta para estas questões: “...aí entrei numa nova dimensão da realidade. Aí tentei fazer arte popular e arte de vanguarda, porque acreditava que Brasília era a síntese desses dois pólos da vida cultural brasileira. (...) O artesanato arcaico nordestino com a imaginação do urbanismo e a arquitetura audaciosa, o Brasil mais moderno e o mais antigo juntos. ”.
Gullar, pernambucano que vinha das experiências neoconcretas no Rio de Janeiro, pretendia criar um Museu de Arte Popular, com ateliês coletivos para os trabalhadores nordestinos residentes no Distrito Federal terem um espaço de lazer e cultura, desenvolvendo sua tradição artesanal a partir de um mercado de arte popular para turistas, gerando assim também uma movimentação econômica importante para o circuito. Mas o projeto não foi adiante, e Gullar percebeu que os próprios trabalhadores, que por conta de suas ocupações não dedicavam-se à produção artesanal tradicional, também não se mostravam muito interessados ou engajados na discussão sobre cultura popular.
No mesmo período, em São Paulo, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) passava por um período de reestruturação e alguns de seus artistas buscavam expandir suas atuações para além do teatro convencional. Era criado então o Teatro de Arena, que, liderado por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, e Gianfrancesco Guarnieri (que vinham do Teatro Paulista dos Estudantes), fazia apresentações com recursos mínimos, onde as funções eram coletivas, e com uma temática brasileira cotidiana.
Apesar do esforço, ainda eram um teatro de minoria e perceberam que continuavam com o mesmo público burguês do TBC: “O Arena era porta-voz das massas populares em um teatro de 150 lugares. Não atingia o público popular, e, o que é talvez mais importante, não podia mobilizar um grande número de ativistas para o seu trabalho. A urgência de conscientização, a possibilidade de arregimentação da intelectualidade, dos estudantes, do próprio povo, a quantidade de público existente estavam em forte descompasso com o Arena enquanto empresa” .
Como conta Gullar: “Surgiram aqueles que achavam que era necessário levar a experiência além daqueles limites que não eram simplesmente culturais, estéticos, eram de outra natureza: diziam respeito à própria inserção do teatro na sociedade brasileira – do teatro como uma forma de produção comercial” .
Desejando compreender melhor os mecanismos de exploração do trabalho sob o capitalismo, Vianinha e Chico de Assis escrevem em 1960 a peça A mais valia vai acabar, Seu Edgard, com a ajuda do jovem sociólogo do ISEB Carlos Estevam Martins, sucesso de público durante os 8 meses que ficou em cartaz na Faculdade de Arquitetura da UFRJ.
Visando a continuidade do trabalho, realizam na sede da UNE um curso sobre História da Filosofia, que contou com a presença do educador Paulo Freire, relatando as experiências do Movimento de Cultura Popular em Pernambuco. No mesmo ano havia sido realizado um Congresso da UNE em Recife, onde o próprio MCP preparou uma exposição sobre suas atividades, sugerindo aos estudantes presentes a criação de iniciativas análogas.
Surge então a idéia do Centro Popular de Cultura em parceria com a UNE que, embora idealizado a partir das atividades universitárias com o teatro, englobava também outros campos da produção cultural: Vianninha seria o responsável pelas atividades teatrais, Leon Hirzman pelo cinema, Carlos Lira pela música e Ferreira Gullar pela literatura, e tendo como presidente Carlos Estevam Martins, também autor do “Anteprojeto do Manifesto do CPC” – emblemático texto sobre a proposta do projeto que se iniciava.
Em 8 de março de 1962 é oficializado o CPC da UNE, que embora ocupasse uma pequena sala na sede da entidade, não recebia nenhuma forma de financiamento fixo, nem da UNE nem do governo João Goulart - recebendo verbas públicas apenas para alguns projetos específicos. A opção pela recusa do financiamento público era justamente manter a autonomia de suas ações perante o governo populista de Goulart, se assumindo como um “órgão da sociedade civil, criado e sustentado por ela o tempo todo”. Segundo Martins, “o nosso público, que iria usufruir de nossa criação cultural, é que deveria pagar por ela, pois só assim tiraríamos, como de fato tiramos, o Estado da jogada e não ficaríamos, como os sindicatos, atrelados ao Estado pelo umbigo da dependência econômica” .
Com a entidade estudantil o CPC realizou o projeto UNE Volante, uma caravana cultural itinerante que levava as produções cepecistas a diversos pontos do país, promovendo as discussões e incentivando a criação de outros Centros Populares de Cultura. As apresentações nas portas das fábricas, sindicatos, em favelas e comunidades rurais realizadas pelos universitários traziam temáticas próprias de cada contexto, incentivando o debate crítico da realidade social brasileira.
Algumas das realizações marcantes do CPC em sua curtíssima duração de dois anos foram: as peças teatrais A mais valia vai acabar Seu Edgard, Brasil – Versão brasileira e Eles não usam black-tie, e peças de agitação como o Auto dos cassetetes e o Auto dos 99%, entre outros; a produção do filme Cinco Vezes Favela e Cabra marcado para morrer ; shows musicais com artistas populares, o disco O povo canta e a Noite da Música Popular Brasileira no Teatro Municipal; a publicação dos Cadernos do Povo Brasileiro e a montagem de uma distribuidora de livros e discos do CPC.
Segundo Roberto Schwarz, “No Rio de Janeiro os CPC improvisavam teatro político em portas de fábrica , sindicatos, grêmios estudantis e na favela, começavam a fazer cinema e lançar discos. O vento pré revolucionário descompartimentava a consciência nacional e enchia os jornais de reforma agrária, agitação camponesa, movimento operário, nacionalização de empresas americanas, etc. O país estava irreconhecivelmente inteligente ”.
Como se pode observar, a temática “povo” era a principal linha de atuação do coletivo que, baseado em uma ideologia do nacional popular, tentava desvendar o Brasil sob a perspectiva da luta de classes, e, assim, incentivar a participação dessa população na construção do Brasil que se desenvolvia. Para eles, a participação do intelectual e do artista na problemática social de seu tempo era uma necessidade impreterível.
Carlos Estevam Martins, no anteprojeto do Manifesto do CPC, situa os artistas em três alternativas em relação à luta do povo: o “conformismo” (“o artista perdido em seu transviamento ideológico” não enxerga a arte como “um dos elementos constitutivos da superestrutura social”), o “inconformismo” (intelectuais movidos por um “vago sentimento de repulsa pelos padrões dominantes”, que no entanto não compreende que “não basta adotar a atitude simplesmente negativa de não adesão”) e o “revolucionário-conseqüente” (opção “por ser povo, por ser parte integrante do povo”), como se julgavam os cepecistas.
Martins ainda classifica os três tipos de arte ditas “popular”: A “arte do povo” seria fruto sobretudo do meio rural, na qual o artista “não se distingue da classe consumidora”, e por isso é considerada “primarista no nível da elaboração artística”; já a “arte popular” estaria assinalada pela divisão do trabalho na produção artística sem ainda “atingir o nível de dignidade artística” legítima. Para ele, estes dois tipos de arte “expressam o povo apenas em suas manifestações fenomênicas” e coexistem com uma arte “dos senhores” que nega este circuito popular, dividindo parte da sociedade e contribuindo para o conformismo social. Assim, o artista do CPC se propõe a uma “arte popular revolucionária”, que “visa dar cumprimento ao projeto da existência do povo tal como ele se apresenta na sociedade de classes”, e onde “o povo nega sua negação”, rejeitando o romantismo populista sobre a cultura popular, o que levaria ao conformismo. Dessa forma, o CPC, através do manifesto escrito por Martins afirma que “em nosso país e nossa época, fora da arte política não há arte popular” .
Esta era, entretanto, a principal crítica feita ao CPC, pelo fato desta representação do povo brasileiro ser feita pelos olhos de uma classe determinada: a juventude universitária de esquerda. A busca pela conscientização das massas e sua conseqüente participação política era feita de forma contraditoriamente hierárquica, uma vez que se levava o conhecimento adquirido pela intelectualidade para as classes populares. A grande crítica ao CPC dizia respeito à sua atuação como se este “povo” fosse uma massa alienada que precisasse de uma vanguarda para orientá-lo e conduzi-lo à revolução. A tentativa de se caracterizar o que seria esta “cultura popular” não poderia ser sempre fiel à realidade, uma vez que isto era feito por pessoas originariamente alheias àqueles contextos . A visão romantizada do “bom povo”, do trabalhador, do homem do campo e da favela, acabava por ignorar as diferenças e contradições de toda uma classe.
Como relata Ferreira Gullar, a tentativa de contato da classe média com a cultura popular que se buscava realizar no CPC não era necessariamente correspondido pelas classes populares: “Levavam-se à sede da UNE grupos folclóricos, cantores populares e gente das escolas de samba; criou-se um movimento muito amplo e muito importante, mas a resposta procedia basicamente do setor universitário. Quando começamos a ampliar o movimento em direção aos sindicatos, às favelas e tal, a coisa começou a complicar. Os operários não tinham experiência de teatro e, quando íamos aos sindicatos, em geral não havia operários para ver as peças”.
O conteúdo excessivamente político das mensagens se sobrepunha à elaboração estética da obra, em busca de uma comunicação mais imediata com seu público , o que se configurou em uma das maiores críticas feitas posteriormente ao CPC, inclusive pela Tropicália, como veremos adiante. Tratava-se claramente de uma concepção da cultura como instrumento de tomada do poder, marcada pela opção de público em termos de “povo” e pela produção coletiva. O artista teria assim, “o laborioso esforço de adestrar seus poderes formais a ponto de exprimir correntemente na sintaxe das massas os conteúdos originais” – ou seja, sua força de trabalho, o fazer artístico, deveria ser utilizado na superação das desigualdades sociais e construção da revolução. Vale ressaltar que o ano era 62 e esta percepção está ligada a uma esperança no futuro e na revolução que está por vir. Havia um certo sentimento de “culpa” por vir de uma classe pequeno-burguesa, e por isso buscava-se a aceitação do povo enquanto “companheiro de lutas”.
Grande parte desta crítica ao CPC se refere à ideologia nacional-popular, que foi mais tarde fortemente repudiada e taxada como “populista”. Para o teatrólogo Zé Celso Martinez, a arte didática realizada pelos cepecistas seria, na verdade, uma estratégia de manutenção do status quo cultural: “(...) na esquerda há um processo de utilização de pessoas ocupando postos de poder que acabam dizendo 'não se mexam porque estamos aqui'. Na verdade isso é uma defesa de posição de poder” .
Estas críticas se apoiavam basicamente em um dos poucos documentos escritos de registro do CPC, o anteprojeto escrito por Carlos Estevam Martins a época da criação do CPC. Entretanto, como o próprio documento carrega no nome, se tratava de um anteprojeto, uma sintetização das idéias que motivaram a criação do CPC, mas que foram revistas ao logo de sua atuação. Ainda que seus integrantes fossem ligados por objetivos e ideologias semelhantes, não se tratava de um movimento homogêneo e sem disputas, e os CPCs criados em outras cidades com a UNE Volante tinham atuações diferentes em seus contextos.
O anteprojeto de Martins e as próprias ações do CPC foram diversas vezes questionadas pelos seus integrantes, havendo até mesmo divergências internas, como no caso do cinema: A linha representada pelo manifesto de Martins que optava por uma criação anônima e coletiva, submetendo a forma artística ao conteúdo político, era rejeitada por exemplo pelos cinemanovistas Cacá Diegues e Arnaldo Jabor, que tinham na experimentação estética e no cinema autoral (inspirados na Nouvelle Vague francesa) sua principal atuação política.
Além disso, vale lembrar que a experiência do CPC é datada de 62 a 64 - quando os militares tomaram o poder e incendiaram a sede da UNE, no dia 1º de março daquele ano. Assim, o CPC estava limitado a falhas historicamente compreensíveis, e que são até hoje revisadas criticamente por seus atores.
De uma maneira geral, pode-se dizer que a principal contribuição do CPC foi a integração dos intelectuais e artistas da classe média urbana com artistas populares e a inserção desta temática na pauta política, correspondendo “ao entusiasmo daqueles jovens que acreditavam que a revolução brasileira batia às portas” . A revelação, a partir das ações do CPC de velhos compositores do campo e da favela – como Cartola, Zé Ketti, Nelson do Cavaquinho e João do Vale, por exemplo “revigorou a música brasileira, tornando-a mais aberta e democrática” . Lembra Vianinha que “a paixão pelo encontro do intelectual com o povo informou muito mais a nós do que aos trabalhadores com quem entrávamos em contato” .
Para Heloísa Buarque de Hollanda, “é importante lembrar, contudo, que a função desempenhada pela ‘arte popular revolucionária’ correspondeu a uma demanda colocada pela efervescência político-cultural da época. Apesar do seu fracasso enquanto palavra política e poética, conseguiu, no contexto, um alto nível de mobilização das camadas mais jovens de artistas e intelectuais a ponto de seus efeitos poderem ser sentidos até hoje” .
Há 6 anos