segunda-feira, 27 de outubro de 2008

3.2 Arte pra quê?

“Admiro muito aqueles que dedicam suas vidas à arte,
mas admiro mais aqueles que dedicam suas arte à vida”
(Augusto Boal)

[cultura e distinção]

A cultura como “acúmulo de conhecimentos e aptidões intelectuais e estéticas (...) continua a apresentar-se no uso cotidiano da palavra, quando se faz com que se assemelhe a educação, ilustração, refinamento, informação ampla”. Para Canclini, “a distinção taxativa entre civilização e cultura, que naturaliza a divisão entre o corporal e o mental, entre o material e o espiritual, naturaliza igualmente um conjunto de conhecimentos e gostos que seriam os únicos que valeria a pena difundir, formados numa história particular, a do Ocidente moderno” .

[sistema de ensino]

“No projeto de modernidade ilustrada, a valorização da arte e da cultura na formação das nações atribuiu valor cultural à produção simbólica de todas as sociedades. Pretendeu-se através da educação e, em seguida, dos meios de comunicação, que as manifestações julgadas mais valiosas fossem conhecidas e compreendidas por todas as sociedades e todos os setores. ” . Frequentemente o sistema de ensino exerce uma função homóloga à da Igreja, contribuindo amplamente para a unificação do mercado de bens simbólicos e para a imposição generalizada da legitimidade da cultura dominante, não somente legitimando os bens que esta consome, mas também desvalorizando os bens que as classes dominadas transmitem, o que gera um certo sentimento de “distância respeitosa” dos consumos considerados mais “legítimos”.

[poder simbólico e reprodução da ordem estabelecida]

Segundo Bourdieu o desenvolvimento do sistema de produção de bens simbólicos é paralelo a um processo de diferenciação, cujo princípio reside na diversidade dos públicos aos quais as diferentes categorias de produtores destinam seus produtos, e cujas condições de possibilidade residem na própria natureza dos bens simbólicos. Estes mesmos bens são concomitantemente valorizados como mercadoria e carregados de significações . Ou seja, a atribuição de certos valores de uso a determinados produtos culturais determina posições de classe, o que diz respeito não apenas a seu valor de aquisição como também à apropriação simbólica destes bens, feitas de maneiras diferentes por classes – ou culturas – diferentes. Para ele, o poder simbólico surge como todo o poder que consegue impor significações e impô-las como legítimas. Os símbolos afirmam-se, assim, como os instrumentos por excelência de integração social, tornando-se possível a reprodução da ordem estabelecida .

[produção erudita x massiva]

Para isto, esses produtos não podem permanecer apenas no restrito circuito onde são concebidos, e a obra de arte é constituída como mercadoria, circulando assim entre as classes – cujas apropriações são diferentes, como já vimos. Neste contexto, surge também produtores de bens simbólicos destinados a este mercado que começa a se configurar, rejeitando os cânones estéticos da burguesia e “adaptando” os produtos de forma a se tornarem acessíveis às classes populares. Pode-se então observar dois campos de produção simbólica: erudita e massiva .

[produção erudita]

O primeiro tende a produzir suas próprias normas de produção e reconhecimento cultural e caracteriza-se também pelo restrito circuito, onde os consumidores culturais são, muitas vezes, também produtores, configurando-se assim, uma produção “entre pares”. Este tipo de produção se aproxima muito à produção cultural pós 64 no Brasil, quando as tentativas de contato entre os artistas e o povo foram impedidas pelo regime ditatorial que se instalara, se tornando assim um espaço de produção, consumo e revisão entre as vanguardas – embora tal produto não se caracterizasse necessariamente como “erudita”.
Naquela época de contestação da ordem estabelecida, a arte parecia tornar-se uma “arte de rejeição”, feita para iniciados, onde o elitismo do “bom gosto” é substituído pelo elitismo do “bom saber”. Mesmo em iniciativas como a do CPC, que buscava “levar a arte ao povo” tornando acessível este campo de produção cultural, o conceito de arte é outro, valorizando a produção simbólica das vanguardas em detrimento à das classes populares, consideradas “superficiais” e “alienadas”, e que por isso mereciam ter acesso a esse outro tipo de produção.
As obras do campo de produção erudita tendem a ser “puras”, “abstratas” e “esotéricas”, acessíveis a um público reduzido e instruído do manejo de tais códigos, além, claro, da própria disposição em adquirir tal código, e por isso o simples contato com este tipo de arte não irá garantir as mesmas formas de apropriação simbólica de tais mensagens.

[industria cultural]

Estabelece-se então o campo da chamada indústria cultural, que como o próprio nome indica, enxerga na arte uma mercadoria, a ser produzida, comercializada e consumida em esferas mesmo independentes. Nessas condições, nasce um público anônimo de “burgueses” em comercialização da arte – como por exemplo, a produção coletiva ou a publicidade para os produtos culturais – que coincide com a rejeição dos cânones estéticos da burguesia. Diferentemente do campo de produção erudita, o sistema da indústria cultural está submisso a uma demanda externa (subordinado aos detentores dos instrumentos de produção e difusão , e, principalmente da demanda do mercado, ou seja, o que é mais “vendável”).
Mário Pedrosa escreve que “Na realidade cotidiana, as massas não mostram nenhum interesse pelas artes. (...) o grande móvel delas é divertir-se. (...) O ritmo acelerado da vida moderna, por sua vez, não deixa ao homem tempo para a contemplação. E pintura, como escultura, exige contemplação” .
Dessa forma, buscando a extensão máxima de público e submetido à ordem hegemônica, os produtos culturais massivos adaptam temas mais “consagrados” ou mais fáceis de serem reestruturados segundo as leis tradicionais de composição das artes populares . E a configuração desta indústria cultural está diretamente ligada aos meios de comunicação de massa, que irão difundir e legitimar tais produtos.

[funcionalidade da arte]

Em suma, a oposição entre legítimo e ilegítimo recobre a oposição entre dois modos de produção: de um lado, o modo de produção característico de um campo que fornece a si mesmo seu próprio mercado e que depende para a sua reprodução, de um sistema de ensino que opera ademais como instância de legitimação; de outro, o modo de produção característico de um campo de produção que se organiza em relação a uma demanda externa, social e culturalmente inferior. Embora o campo de produção cultural seja muito mais complexo do que este dualismo, esta divisão permite-nos observar a arte no que diz respeito não somente a sua produção, mas também a suas formas de uso. Assim, dentro do campo de produtores artísticos e intelectuais – tanto da classe dominante quanto de tendências resistentes – observa-se um certo questionamento da funcionalidade da arte e da participação pessoal do artista em seu momento e espaço.


[artistas x sociedade – Rev. Ind.]

O processo de separação entre o material e o simbólico no campo cultural está ligado à Revolução Industrial e a reação romântica por parte do artista (“rebelde”, “isolado”) de liberar sua produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social – que até então estavam sob a tutela da aristocracia e da Igreja.
Aracy de Amaral afirma que “no fundo, é o divórcio de decretado a partir do século XIX entre os artistas e a sociedade, a partir da Revolução Industrial, é a arte gradativamente despojada de uma função. E enquanto a arte não reencontrar sua função social, prosseguirá a serviço das classes dominantes, ou seja, daqueles que detêm o poder econômico e, portanto, político” .
Até então, o “fazer arte” era visto enquanto ofício, uma profissionalização para um fim definido: retratista, ourives, escultor de peças, ilustrador, decorador, etc, que trabalhavam para atender às demandas da burguesia. Com essa separação, o artista - embora objetivando a venda de sua produção para sua sobrevivência - passa a produzir sem uma preocupação imediata com o destino de sua obra, que passa a ser fenômeno independente dele, posterior a seu trabalho e seu público passa a ser cada vez mais desconhecido por ele. Para estes artistas, converter a arte em algo útil era obrigá-la a servir àqueles mesmos burgueses que tanto desprezavam.
Citando Lênin, Zdanov (da corrente realista soviética) afirma entretanto que “viver numa sociedade e não depender dela é impossível. A liberdade do escritor burguês, do artista, da atriz, só constitui uma dependência encoberta: dependência do dinheiro, dependência do corruptor, dependência do solo” .


[arte política]

“Podemos imaginar perfeitamente uma sociedade sem arte (...), mas dificilmente podemos admitir a hipótese de uma arte sem sociedade, a arte é de certo modo para a sociedade como o peixe para a água” .
Ou seja, ainda que busque se isolar da sociedade, o artista não se encontra desconectado das interferências do mundo a sua volta e por isso há artistas que colocam o seu fazer a serviço de uma sociedade que gostariam de transformar com sua contribuição, ou buscam fazer com que sua obra reflita sua realidade conflitante.
Em entrevista à Heloísa Buarque de Hollanda sobre a produção artística e sua relação com a sociedade na década de 60, Lygia Clark, importante artista plástica da vanguarda brasileira, afirma que "se a gente não se propõe a mudar o mundo, como visão, não adianta nada. Hoje em dia eu acho que qualquer coisa que se faça deve estar tão ligada a um ato político que não se deve haver mais diferença entre a política em si e a arte de outro lado... um gesto, uma fala, uma atitude, devem ser coisas politizadas" .
Assim, “a realidade é não apenas uma temática, mas uma posição definida por parte de muitos artistas. Em decorrência das agitações sociais do nosso tempo, o artista se sente impelido a participar, ele também, com sua produção, de eventos que o chocam vivamente, como guerras, revoluções, perseguições, injustiças sociais” .
E esta tomada de posição é claramente identificada na produção artística da década de 60, principalmente no Brasil regido pela ditadura militar, como já discutimos nos capítulos anteriores. O questionamento sobre a funcionalidade da cultura e sua aplicação na vida social foi palco para inúmeras divergências no próprio fazer artístico da esquerda em uma certa “disputa por engajamento”.

[politização da arte à esquerda]

Para Dufrenne, a politização do artista pode ser, em si, ambígua: “pode significar a submissão, mais ou menos livremente consentida, a uma instância política, por exemplo, a um partido [como foi acusada a atuação cultural do CPC, claramente influenciada pelo PCB, o ISEB e a UNE]; mas ela também pode significar a determinação de se comprometer na ação política para orientá-la e em última instância para estetizá-la, sem absolutamente subordinar a práxis artística à práxis política e, também, sem conceber a práxis política como a adesão incondicional a um partido” – vale ressaltar que ele se refere a uma “ ‘politização à esquerda’, uma vez que ‘politizada à direita’ a arte o é sempre, posto que é tomada pela classe dominante.
Para ele, a ‘politização da arte à esquerda’ se caracteriza por uma certa exigência de liberdade, um certo gosto pela dança e por tudo o que ela tem de generoso e de despreocupado” .
Esta última posição pode ser claramente encontrada na arte tropicalista, que embora tenha sido muitas vezes criticada e rejeitada pela esquerda “engajada”, buscava não apenas politizar o cotidiano, mas também cotidianizar a política, inserindo no debate temas como a homosexualidade, a mulher na sociedade, e a crítica o comportamento conservador, considerados “menores” e até “alienados”.

[o engajamento do artista]

“O artista tem conhecimento de que detém um certo estatuto, que desempenha – ou fazem-no desempenhar – um papel, que não pode acreditar na neutralidade da arte a menos que ignore o destino das obras a partir do momento em que entram no circuito comercial, e talvez mesmo a sua gênese, quando ele pensa só estar seguindo sua fantasia ou só obedecendo seu apelo.
Então ele se sente responsável, não apenas pela obra que cria, mas pelo uso que dela é feito, os efeitos por ela produzidos. Perdida a inocência, denunciando o álibi: não faço política, é necessário que se tome partido, e não apenas como cidadão, mas como artista e, portanto, sem renunciar a sê-lo” .

[interpretações políticas nas artes e outras esferas de atuação]

Mesmo que possua em sua intenção uma crítica social, esta mensagem nem sempre é absorvida por aquele que “consome” (não necessariamente no sentido mercadológico) a produção artística. Por outro lado, muitos trabalhos considerados revolucionários, nada tiveram de politizados em sua criação, e estas interpretações cambiantes se dão justamente pela complexidade de signos e valores simbólicos divergente entre diferentes culturas.
Além disso, a atuação política do artista não se limita à produção, mas também diz respeito a sua inserção em outros circuitos como manifestações de rua, a apropriação do mercado através de múltiplos trabalhos coletivos, à recusa de certos padrões estéticos, entre outros.

[relação com a sociedade de consumo]

Por outro lado, “a militância política do artista, [por estar ligada diretamente a seu contexto social] também é limitada pela sociedade de consumo, pois sua produção muitas vezes é destinada a fins comerciais e subordinada a pesquisas de opinião e análises mercadológicas. (...) Mesmo quando a arte se torna revolucionária, de propaganda, ela pode tornar-se, depois de um mês, uma arte de ‘agradável decoração’ ”.

[desinteresse pela arte]

“Nenhuma época foi mais hostil à arte que a nossa. Admite-se que o comum dos homens pode viver sem ela. A necessidade de imagens se vê satisfeita na atualidade pela fotografia e o cinema” e “as obras de arte não satisfazem nenhuma solicitação que o mundo moderno não possa satisfazer por meio diferentes. ”
Alguns críticos afirmam que o capitalismo não leva a arte a sério e certas artes, a despeito do artista, foram adotadas pela sociedade de consumo americana, pelo Gaullismo e pelo Partido Comunista. Ou seja, apesar dos intuitos que regeram sua concepção, a sociedade de consumo “processa” essa produção de igual maneira.


[a manipulação da arte pelo mundo capitalista]

Desde os anos 20 observam-se diferentes tendências de artistas, alguns a favor da integração da classe artística na indústria e outros recusando a aceitar uma perspectiva utilitária para a arte. De uma forma ou de outra, a arte está relacionada e sofre influências do meio no qual está inserido.
Por exemplo: Nos anos 60 a CIA apoiava de maneira encoberta organizações regionais como o Congresso pela Liberdade da Cultura e o expressionismo abstrato foi utilizado durante a Guerra Fria pelos EUA como vitrine para a exportação de uma imagem “aberta” do mundo livre, em contraposição ao famigerado realismo socialista soviético.

[ imperialismo cultural na américa latina]

Este processo está ligado também às multinacionais, que colocavam materiais novos à disposição dos artistas experimentais e vanguardistas, e sob o patrocínio do MOMA (Museu de Arte Moderna de Nova York, instituição dominada pelos Rockefeller) patrocinava exposições e certames artísticos em toda América Latina (uma espécie de “imperialismo cultural” que, atuando no inconsciente coletivo alheio, buscava atrair de volta o “respeito” desta região após a revolução cubana) .
“O lucro que os EUA recebiam é claro que não redundava em dólares, mas numa moeda mais sutil, que consiste na modificação da consciência, a infiltração cultural, o desvio de uma arte orientada socialmente, nacionalista e objetiva (representada pelo realismo social) para uma arte de orientação formalista ou abstrata que agradava somente a um número limitado de intelectuais ”.
Mesmo no Brasil, a produção cinematográfica dependia por um lado de políticas estatais nacionalistas e, de outro, da importação de técnicas, equipamentos e da exportação de suas obras, estando assim o artista ligado, querendo ou não, a uma indústria de bens culturais.

[conivência dos artistas]

Para Aracy de Amaral, muitas vezes esta apropriação da arte pelo sistema acontece com a conivência dos artistas por seu “neutralismo”, recusando-se a reconhecer ou aceitar seu papel de produtores de bens de consumo. Ou seja, a despeito da intencionalidade ou não, explícita pelo produtor, a obra de arte é freqüentemente manipulada politicamente em seus estágios de circulação (galerias, bienais, salões) e consumo .

[engajamento dos artistas na america latina]

“Sentindo-se marginais a uma injustiça social clamorosa, sensíveis às agitações que buscam alterar as estruturas sociais, os artistas percebem a distância entre seu trabalho e a realidade social. Daí o desejarem dela participar de maneira mais efetiva, sobretudo num continente de grandes desníveis, como a América Latina, onde muitos partidos comunistas e socialistas foram fundados e militados por artistas e intelectuais.(...) Enquanto grande parte da arte ocidental se preocupa com a experiência individual ou relações entre os sexos, a maior parte das principais obras da literatura latino-americana e mesmo algumas de suas pinturas são muito mais preocupadas com fenômenos sociais e idéias sociais” .
O muralismo mexicano que atraiu a tenção dos artistas inquietos de todo o continente, como Di Cavalcante e Portinari no Brasil, inovava ao fazer herói da arte monumental as massas, o homem do campo, das fábricas, das cidades, e não mais os deuses, reis e chefes de Estado.
A busca pelo alcance social imediato da arte buscava neste momento incitar um grupo social à resistência, principal argumento da arte politizada produzida pelo CPC, e este aspecto didático da arte comprometida vem do realismo soviético: revela uma força moral e verdadeira ideologia, um despertar de consciência coletiva que fazia do trabalhador um herói.
O ideal pregado por Zdanov – e claramente identificado no projeto cepecista - aceitava exclusivamente o realismo como tendência possível nas artes e previa que esta deveria “fazer evoluir os gostos do povo, a erguer mais alto as suas exigências, a enriquecê-lo com novas idéias, a impulsionar o povo para frente” .
Como se pode ver, a referência cultural não era a cultura feita pelo povo, mas a cultura erudita. “O artista se dirige ao povo como um público extra, dá, mas não recebe, quer ensinar, mas pensa que não deve aprender. Afirma que se deve ‘elevar o povo a arte e não nivelar por baixo’, opinião sustentada inclusive por parte da esquerda que acredita que o socialismo na arte se alcança fazendo muitas e acessíveis reproduções de Picasso” .


[a ineficácia da arte política]

A submissão da arte a idéias políticos pode ainda ter efeito reverso, uma vez que o artista se torna porta-voz acrítico de um dado regime, tão opressor quanto o que ajudou a desconstruir, submetido a uma disciplina ideológica.
O artista mexicano Diego Rivera, em manifesto por uma “arte independente”, escreve que por “liberdade de criação não tratamos, de modo algum, de justificar o indiferentismo político e que está muito distante de nossa mente querer ressuscitar uma suposta ‘arte pura’ que, ordinariamente, serve aos fins impuros da reação” .

[marginalidade]

Frente à massividade não apenas da produção, mas também dos produtores (devido à grande quantidade de artistas, sejam “profissionais” ou não), alguns se auto-entitulam “marginais” a este circuito cultural, inovando na linguagem artística por um lado, e se direcionando a um restrito público, por outro.

[problemática do artista contemporâneo]

Assim, Aracy de Amaral aponta três direções para a “problemática do artista contemporâneo: 1)como fazer que o produto de seu trabalho tenha uma comunicação direta com um público mais amplo; 2) que sua obra possa refletir uma participação direta em seu contexto social; e, eventualmente, 3) a participação dessa obra para uma eventual ou desejável mudança da sociedade.
(...) Para escapar ao elitismo vicioso representado pelos meios artísticos vinculados às classes dominantes, o único caminho parece ser, na realidade, o da ‘socialização da arte’, entendida como uma possibilidade de estender a muitos a oportunidade de se iniciarem no fazer artístico e, assim, estarem aptos a fruir do prazer estético diante da produção da arte” .
“O múltiplo é a democratização da arte contra a socialização da arte. É a reforma contra a revolução” .
A arte tropicalista, ainda que em graus menores, contava com a participação do público no sentido da recepção e construção do sentido, uma vez que muitas dessas produções (no campo das artes plásticas de Lygia Clark e Oiticica principalmente) só se completavam com a intervenção do espectador na obra. Ao estimular a ruptura dos padrões de comportamento do espectador com relação à obra de arte, impulsiona-se a imaginação e criatividade popular a partir da base mais sólida possível, o que também é uma atitude política de alteração da ordem. Para o teatrólogo Augusto Boal, o espectador é, na verdade, um “espect-ator”, um ator em potencial, pois a possibilidade criativa artística é inerente a qualquer ser humano, pelo simples fato de ser um ser humano.


[arte como “necessidade vital de expressão”]

Segundo Plekhanov: “a arte é real como a própria vida e, tal como a vida, necessita ter um sentido e um significado; existe porque não pode deixar de existir. (...) Não é um fenômeno social, mas algo que surge instintivamente, independente de uma função social, mais como uma ‘necessidade vital de expressão’ ” .
Ferreira Gullar, ao defender a arte “de massa” – no sentido da produção realizada por aqueles que seriam, a princípio, consumidores – afirma que quem a condena ignora “as potencialidades expressivas do homem contemporâneo. Afirmá-lo seria desconhecer a complexidade do mundo atual nos seus desníveis de desenvolvimento, nas peculiaridades de culturas nacionais e mesmo nos complexíssimos fatores de ordem existencial que compõem cada consciência, cada vida humana, integrante desse conjunto em transformação. ”
[transformação social pela arte]

Neste sentido, alguns caminhos apontados por Canclini para que a arte não seja somente assunto de artistas e grupos de artistas, é a transformação radical nas instituições de ensino; a inserção ativa e crítica de artistas, críticos e intelectuais no circuito de produção e circulação da arte; e a construção de canais alternativos ligados a organizações populares.
Além disso, não podemos esquecer que esta transformação social pela arte depende do conjunto da sociedade, da modificação sistemática de todos os meio de sensibilização visual e, assim, a formação de um novo público: “Devemos reorganizar as instituições de difusão cultural e o ensino artístico, construir outra crítica e outra história social dos processos estéticos para que os objetos e métodos que encerramos nas vitrinas a arte se recoloquem na vegetação de fatos e mensagens visuais que hoje ensinam as massas a pensar e sentir” .

sábado, 18 de outubro de 2008

3.1 A cultura extraviada em suas definições

Para iniciar, talvez seja interessante fazer uma reflexão do conceito de cultura, o que estará diretamente ligado a sua apropriação em diferentes esferas.
Como aponta Canclini, a própria definição de cultura é objeto de disputa e há muito é “extraviada em suas definições”: “Devemos considerar não só as definições múltiplas sobre o cultural dadas pelas ciências humanas e sociais, mas também as conceituações feitas pelos governos, mercados e movimentos sociais.
O treinamento antropológico para trabalhar com situações interculturais dá instrumentos valiosos para tornar visível o que sucede sob o predomínio atual da produção industrial e da circulação massiva e transnacional dos bens e mensagens culturais”.


[valores culturais e significações]

A cultura pode ser caracterizada como aquilo criado pelo homem e por todos os homens, do simplesmente dado, do “natural” que existe no mundo. “A conseqüência política desta definição foi o relativismo cultural: admitir que cada cultura tem o direito de dotar-se das suas próprias formas de organização e estilos de vida” e a noção de que “toda arte é automaticamente social, posto que emana do homem, e, assim, indiretamente, reflete seu contexto” , observando-se a complexidade de línguas, rituais, objetos e símbolos possuidores de diferentes significações e apropriações de acordo com o meio no qual está inserido.
Assim, saindo do esquema marxista que apenas diferencia valor de uso e valor de troca, Jean Baudrillard aponta ainda duas outras formas de valor: valor signo – o conjunto de conotações e implicações simbólicas, que estão associadas a este objeto e que agregam outros valores que influenciam diretamente no valor de troca - e o valor símbolo – onde o bem cultural, vinculado a rituais ou a atos particulares que ocorrem dentro da sociedade, adquirem diferentes significações .
Sobre isto, Canclini comenta: “Esta classificação de quatro tipos de valor (de uso, de troca, valor signo e valor símbolo) permite diferenciar o socioeconômico do cultural. Os dois primeiros tipos de valor têm a ver principalmente, não unicamente, com a materialidade do objeto, com a base material da vida social. Os dois últimos tipos de valor referem-se à cultura e aos processos de significação” . Retomando Bourdieu, podemos afirmar então que a sociedade se estrutura, para além das relações de força, nas relações de significação e sentido, que constituem a cultura .


[cultura como processo social]

Segundo Canclini: “A cultura apresenta-se como processos sociais e parte da dificuldade de falar dela deriva do fato de que se produz, circula e se consome na história social. (...) Daí a importância que adquiriram os estudos sobre recepção e reapropriação de bens e mensagens nas sociedades contemporâneas. Mostram como um mesmo objeto pode transformar-se através de usos e reapropriações sociais. E também como, ao nos relacionarmos uns com os outros, aprendemos a ser interculturais”.

Esta concepção processual e cambiante da cultura é o que explica a transformação do significado de bens culturais quando passados de um sistema cultural ao outro, inserindo-se novas relações sociais e simbólicas, embora possam permanecer certos traços do sentido anterior – a iconografia, por exemplo -, ainda que seus fins pragmáticos e simbólicos predominantes participem de outro sistema sociocultural: “comunicam-se significados, que são recebidos, reprocessados e recodificados. Também precisamos relacionar a análise intercultural com as relações de poder para identificar aqueles que dispõem de maior força para modificar a significação dos objetos” .


[a reprodução simbólica da cultura]

Segundo Hall, “a ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros” . Assim, a cultura também é uma instância simbólica da produção e reprodução da sociedade, constitutivas das interações cotidianas, à medida que na vida social se desenvolvem processos de significação.
Neste processo, toda produção – e reprodução - social é cultura, como bem evidencia Althusser ao afirmar que a sociedade se reproduz através da ideologia e Bourdieu ao interpretar a cultura como espaço de reprodução social e organização das diferenças . Neste sentido, pode ser uma instância de conformação do consenso e da hegemonia, ou seja, de configuração da cultura política e também da legitimidade. E por tratar-se de um terreno de tamanha dimensão simbólica, a cultura também está relacionada à eufemização dos conflitos sociais: no teatro, na dança, nas artes plásticas, na música, no esporte, observa-se a dramatização simbólica do que acontece na sociedade . Estas diversas definições do que é cultura, que não deixa de ser uma disputa cultural por significados, reflete, então, os conflitos nos modos de conhecer a vida social.


Esta compreensão do caráter processual e dialético da cultura é fundamental para nossa reflexão, pois “os processos de globalização exigem transcender o alcance nacional ou étnico do termo a fim de abarcar as relações interculturais”. Para Arjun Appadurai, observar o caráter cultural (no adjetivo) facilita falar da cultura não como essência ou algo que cada grupo traz em si, mas como o subconjunto de diferenças entre os grupos sociais que caracterizam assim a sua relação com significados do mundo . Resumindo, “o conjunto de processos através dos quais dois ou mais grupos representam e intuem imaginariamente o social, concebem e gerem as relações com outros” (canclini – a globalização imaginada)

Capítulo 3 – Cultura hoje

Se nos capítulos anteriores foi possível fazer um panorama do contexto e da produção de cultura no Brasil e no mundo na década de 60, iniciarei este capítulo fazendo um paralelo entre aquela realidade e a de hoje, a partir de suas significativas diferenças que irão alterar não só a produção cultural, como a própria relação das pessoas, do poder público e da iniciativa privada com a cultura. Buscarei então fazer uma análise de como o conceito de cultura vem sido expandido e como esta é apropriada não mais como um fim em si mesma, mas como ferramenta política, social e econômica. E assim, observar como a centralidade da cultura na contemporaneidade e sua conveniência para o mercado, o Estado e a sociedade civil irão alterar as formas de produção artísticas em um mundo globalizado

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Apresentação de Teatro Fórum na Semana da Democratização da Comunicação

Abrindo um parênteses nesta leitura super agradável que está a minha monografia (rs), aproveito para fazer uma bela divulgação.

Afinal, para que serve ter um blog né?


"O Núcleo de Teatro do Oprimido do DCE da UFF tem o prazer de convidá-los para a 1° apresentação de Teatro-Fórum do grupo, no dia 17 de outubro, às 16 horas, na Praça XV.

Dia 17 de outubro é o Dia Internacional da Democratização da Comunicação e em diversos estados e países são realizadas atividades para dialogar com a população sobre o tema.

No Rio de Janeiro, entre outras atividades durante a semana, será realizada uma audiência pública na Alerj às 10h sobre a Conferênica Nacional de comunicação e um ato público, a partir das 15h, no qual o Teatro do Oprimido fará uma intervenção.

Maiores informações e a programação da semana no Rio em: http://www.rioproconferencia.blogspot.com

O grupo de Teatro do Oprimido se reúne todas as terças, às 15h no teatro do DCE da UFF. Participe!

Contamos com a presença de vocês e pedimos que divulguem a quem possa interessar!

Até lá!"

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

1.3.4. A contestação e a arte

Nas artes plásticas também era possível observar a reformulação de valores e, principalmente do conceito de arte. A pop art norte americana – influenciada pelas obras de Marcel Duchamp nos anos 30 e simbolizada principalmente nas obras do artista Andy Wahrol em 50/60 – se apropriava de temáticas do cotidiano para criticar o “American Way of Life”. A simbologia de produtos do mercado publicitário americano era utilizado como tema da obra, reafirmando que a arte deixava de lado a abstração para assumir um caráter mais figurativo, a fim de provocar uma sociedade cada vez mais guiada pelos padrões de consumo capitalistas. Embora não se caracterizasse como um movimento contracultural, a pop art influenciou questionamentos e experimentações estéticas, como no movimento Nova Objetividade Brasileira, cujo precursor Hélio Oiticica foi uma das figuras mais importantes da vanguarda das artes plásticas e da contracultura brasileira na época.

No Brasil, o teatro também assumiu um importante papel na manifestação artística contracultural que se manteve conectada com as tendências internacionais. O experimentalismo do Living Theatre e o teatro anárquico e político do Oficina de José Celso Martinez Correa – que mantinham permanete intercâmbio e influência um no outro - foram revolucionários no sentido de alterar a relação entre o palco e a platéia, entre os textos e os atores e a direção do espetáculo.

Separados por significativas diferenças no contexto político e cultural dos dois países, estes movimentos tiveram papel fundamental no questionamento do estatuto de arte, do papel do artista e da relação entre a obra e o público. A arte a a cultura serão no Brasil o principal canal de discussão – e articulação - política daquela época, como veremos a seguir.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

1.3.3 - A mulher na sociedade

Para o brasilianista Christopher Dunn, autor do livro “Jardim de brutalidade – A Tropicália e a emergência de uma contracultura brasileira”, “esse legado da contracultura fez com que se abrisse mais a noção do que era o campo da política, até então restrito aos partidos”[1]. Neste sentido, ainda que de forma aparentemente desbundada, a Tropicália buscava “cotidianizar a política e politizar o cotidiano”, trazendo para a pauta de debates questões da liberação sexual como a homossexualidade e a relação homem-mulher. Na onda de movimentos contestatórios daquela década, se fortificava o movimento feminista que, a partir de um conjunto de idéias políticas, filosóficas e sociais, procuravam promover os direitos e interesses das mulheres na sociedade civil, em busca da igualdade entre os sexos. A principal referência do existencialismo, tese segundo a qual cada pessoa é responsável por si própria, era o casal Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, que mantinham um relacionamento aberto – a versão politizada do amor livre, por assim dizer. Em 1949, Simone escreve o livro “O Segundo Sexo”[2], defendendo que a hierarquia entre os sexos não é uma fatalidade biológica e sim uma construção social, e que serviu de embasamento teórico e político para as reivindicações feministas daquela década. No Brasil, Nara Leão, Elis Regina, Gal Costa, Rita Lee, Lygia Clark, entre outras, ocuparam na década de 60 importantes e diferentes papéis na inserção da mulher nos debates da sociedade através das artes, sem esquecer de outras importantes feministas brasileiras como a escritora Rose Marie Muraro e a atriz Leila Diniz, [3].
[1] 68 – O ano da revolução pela arte. Segundo Caderno, O Globo, 18 de maio de 2008.
[2] DE BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo. São Paulo : Difel, 1955
[3] Sobre feminismo, ver Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy, 1991e Céli Regina Jardim Pinto, 2003

1.3.2 O rock'n'roll

É importante assinalar a importância dos meios de comunicação de massa para configuração da contracultura da década de 60: “pela primeira vez, os sentimentos de rebeldia, insatisfação e busca, que caracterizam o processo de transição para a maturidade, encontram ressonância nos meios de comunicação”.

Aquela geração começava então a desenvolver uma cultura própria na música, na moda, na linguagem e os avanços tecnológicos da época os conectavam com a juventude do resto do mundo a partir de uma linguagem universal: o rock.
A música foi o principal canal de expressão daqueles ideais, e artistas como Jimi Hendrix, The Doors, Bob Dylan, Janis Joplin, Led Zepelin, The Beatles, Mick Jagger e a Tropicália brasileira – entre muitos outros em todo o mundo - faziam a trilha sonora de uma geração que buscava novas maneiras de viver e amar. O rock´n´roll – fusão explosiva do blues, jazz, folk e country – deixa de ser apenas um subproduto da indústria cultural que se consolidava naquela década e construía um discurso crítico social e comportamental na mídia, incorporando principalmente elementos da cultura negra que ganhava força nos EUA.

A experimentação e a quebra do padrão em relação aos formatos da música industrial era refletido no som dos britânicos Beatles, em seu emblemático álbum “Sargent Pepper´s Lonely Hearts Club Band”, que, por sua vez, influenciaram diversos movimentos musicais no mundo – como a própria Tropicália, que veremos adiante. Além disso, contestavam o papel do músico na sociedade de consumo através de intervenções artísticas politizadas – como a apaixonada e violenta versão do hino nacional executada por Jimi Hendrix no famoso festival de Woodstock, dando expressão à revolta e à confusão que marcavam a vida dos jovens da época.

1.3.1 O movimento hippie

Em resposta à violenta intervenção norte americana no Vietnã, muitos preferiram reagir de forma pacifista, criticando autoridades e os valores da classe média adotando estilos alternativos de vida. Surgiam naquela época diversas comunidades alternativas – em sua maioria longe dos centros urbanos- , onde buscava-se uma vida mais simples e livre, e onde os instintos não fossem reprimidos pela moral e pelo consumista padrão de vida ocidental.

Mas o movimento hippie não se limitava a esses pontos alternativos e se refletiam em novas posturas e práticas sociais: os cabelos cresceram, defendia-se o uso de drogas – principalmente a maconha e o LSD – para a alteração do estado de consciência e o amor livre era bandeira da experimentação contra a repressão moral.
O lema “faça amor, não faça a guerra” revelava o espírito libertário dos movimentos pacifistas daquela geração, que crescia em todo o mundo. Sua maior manifestação foi o festival Woodstock em outubro de 1969, em uma fazenda em Nova Iorque, onde se apresentaram diversos artistas que de alguma forma se relacionavam com as propostas do movimento hippie: o folk, com seu pacifismo e sua contundente crítica social; o rock, com sua contestação ao conservadorismo dos valores tradicionais; o blues, com sua melancolia que há décadas já mostrava as contradições da sociedade norte-americana; e a cítara de Ravi Shankar, representando a presença marcante da influência oriental na contracultura, entre outros. Entre drogas lisérgicas, amplificadores e muita lama, 400 mil pessoas reivindicavam outro modelo de sociedade, praticavam o amor livre e se opunham pacificamente à Guerra do Vietnã.


Além disso, a disputa ideológica da Guerra Fria buscava ignorar a diversidade cultural vinda do outro lado do planeta. Assim, a crescente opsição ao estilo de vida norte-americano, combinada com o desenvolvimento tecnológico que permitia o maior contato com outras realidades, fez com que muitos jovens se aproximassem da cultura oriental na busca por novos estilos de vida. A preocupação com o lado espiritual e o transcedentalismo popularizaram práticas como a yoga e a meditação. Gilberto Gil conta que quando foi preso, em 68, não via outra forma de sobreviver na prisão, em meio a tanta violência e incertezas, senão se voltando para si mesmo e buscando forças em seu eu interior. Assim, em seu exílio em Londres, buscou práticas orientais de meditação e espiritualidade, o que refletiu no alto grau de experimentação em seus trabalhos posteriores.

Também é dessa época a preocupação com produtos orgânicos e os estudos sobre a ecologia, que, para além da preocupação ambiental, busca o equilíbrio dos sistemas – princípios estes que foram aplicados inclusive na sociologia -, dando início aos primeiros movimentos ambientalistas que ganharam força na década seguinte.

1.3 A contracultura

A contracultura aparecia como resistência aos modelos impostos pelo capitalismo – embora também não fizessem defesa ao modelo socialista – e, variando entre o desbunde e formas mais politizadas, criticavam de uma maneira geral o autoritarismo e os valores da classe média.
Naquele momento a imaginação estava em alta, o que é claramente identificado em lemas como “A imaginação no poder”, um dos lemas das manifestações na França daquele ano.
Entre ditaduras militares, o crescimento da sociedade materialista e consumista e o engajamento político com a classe operária, jovens embarcavam em diferentes graus de psicodelia acreditando que era possível mudar o mundo e contestar a ordem moral até então vigente na sociedade ocidental.

Para os especialistas, a obra inaugural da contracultura no mundo é o poema “Uivo” de Alain Ginsberg, publicado em 56, um longo poema em seis partes, onde descreve a falência moral dos EUA e o fracasso de sua geração em mudar alguma coisa nas próprias vidas. Ginsberg fazia parte da chamada “Beat generation”, um grupo de jovens intelectuais (chamados de “beatniks”) que contestavam o consumismo e o otimismo do pós-guerra americano, o anticonsumismo generalizado e a falta de pensamento crítico. O termo, entretanto, é atribuído ao professor americano Theodore Roszac, autor em 1969 do livro “O fazer de uma contracultura – Reflexões em uma sociedade tecnocrata e a jovem oposição”, que buscava fazer um elo entre os protestos estudantis, o movimento hippie e a recusa à sociedade industrial.

No Brasil - muito em função da ditadura militar que censurava a difusão artística - a produção e o circuito cultural se viam restritos a uma certa marginalidade e nomes como Torquato Neto, Waly Salomão, Luiz Carlos Maciel, Rogério Sganzerla, além dos artistas tropicalistas, foram nomes importantes para a contracultura brasileira.
O termo contracultura se refere tanto ao conjunto de movimentos de rebelião da juventude que marcaram os anos 60 - como o movimento hippie, a música rock, a movimentação nas universidades, as viagens de mochila e o uso deliberado de drogas - como também a um certo espírito de contestação e enfrentamento da ordem vigente, de caráter profundamente radical e divergente às forças mais tradicionais de oposição a esta mesma ordem dominante.

Para Carlos Alberto Messender Pereira, trata-se de um tipo de crítica anárquica que, de certa maneira, “rompe com as regras do jogo” em termos de modo de se fazer oposição a uma determinada situação, tendo assim um papel fortemente revigorador da crítica social.
Para o crítico literário Carlos Nelson Coutinho, a contracultura no Brasil foi mais um movimento “extracultural”, se colocando mais como uma crise do que uma tentativa de resolvê-la - por não solucionar certos impasses da produção cultural em si. Entretanto, em um momento onde as concepções estruturais dos problemas político limitavam de certa forma seu conteúdo, o abstracionismo estrutural da contracultura evidenciou algumas contradições e trouxe para o plano cotidiano o debate político.

1.2 - Os EUA e a Guerra do Vietnã

No centro dos protestos, estava um Estados Unidos repleto de contradições. Apesar do vertiginoso crescimento econômico, a paranóia anticomunista da Guerra Fria, as desigualdades sociais e o moralismo norte-americano dividiam a população. Assim como em outros lugares do mundo – guardadas as devidas proporções – surgiam movimentos civis de críticas às idéias elitistas, à hipocrisia e à alienação da sociedade norte-americana, reivindicando maior liberdade na vida cotidiana, além de fazer oposição, é claro, à Guerra do Vietnã.

Além das manifestações contra sua política militar externa, uma parcela significativa da sociedade norte-americana começa a contestar nessa década seus próprios valores e preconceitos. Valendo-se da imagem democrática que o país buscava projetar por causa da Guerra Fria, o movimento negro ganhava força denunciando a contraditória realidade das relações raciais, a pobreza e a discriminação aos quais eram submetidos os negros dos EUA. Tiveram assim um importante papel na expansão do Estado do Bem Estar Social no país – por outro lado, uma das principais ferramentas do “American Way of Life” que tentava-se imprimir no mundo capitalista. Em busca de reconhecimento e igualdade de direitos e oportunidades, buscaram alterar as relações políticas, raciais e sociais no país. O uso de canções e comícios aproximou brancos da luta dos negros, muito em parte devido ao carismático líder Martin Luther King, pastor da Georgia que propunha a luta por direitos civis de forma não-violenta – também em resposta opositiva à Guerra do Vietnã. O Partido dos Panteras Negras, importante e até hoje lembrado na luta militante contra o racismo, buscava garantir serviços sociais para a comunidade negra a partir de um “nacionalismo cultural”. E ativistas e militantes, como o líder mulçumano Malcom X, proporcionaram visibilidade ao black power valorizando tradições afro-americanas e apoio a movimentos revolucionários no Terceiro Mundo. As estratégias, ideais e coragem do movimento negro americano inspiraram sindicalistas, feministas, lésbicas e gays, povos indígenas e imigrantes não só nos Estados Unidos como no mundo.

1.1 - O maio de 68 francês

A França, por exemplo, vivia um momento de contínua expansão econômica, traduzida no aumento constante do poder de compra e do consumo exacerbado, impulsionado pelo rádio e pela televisão. Patrick Rotman, cineasta e historiador, afirma que “a renovação geracional e a modernização econômica, porém, iriam se chocar com uma sociedade ainda dominada pelos valores tradicionais e por uma rígida moral. Esse verdadeiro abismo entre o velho e o novo iria desembocar uma explosão repentina, quando milhões de estudantes e trabalhadores paralisaram a França em maio de 1968 ”. Estas manifestações partiam de um grupo social autônomo: jovens estudantes que trabalhavam e, por isso, tinham acesso ao consumo, ainda que de forma crítica. Suas grandes bandeiras naquele momento eram a liberalização dos costumes e reformas no modelo universitário. Era um momento de questionamento, sobretudo existencial – onde Sartre e Beauvoir foram importantes referências teóricas -, e a reivindicação por mais liberdade, emancipação e autonomia eram a pauta do dia. Em uma perspectiva cultural, a causa trabalhista também foi um grande foco da atenção dos estudantes naquele momento, que acreditavam que não se deveria viver para trabalhar, mas trabalhar para viver, e a aliança estudantil com o operariado se mostrou fundamental para as manifestações daquele período. Lemas como “Trabalhadores do mundo, divirtam-se” e “O patrão precisa de você, você não precisa dele”, visto nas ruas de Paris daquele ano, refletiam o clima de contestação da ordem burguesa de trabalho e acúmulo.

Dada a situação política na França que, diferentemente de outros países, não vivia um regime totalitário, se apoiavam em causas externas para refletir sobre as contradições do próprio país, as quais iriam questionar nas manifestações. Estas transformações culturais na França de 68 tinham suas raízes no movimento surrealista de 36, onde se questionava a concepção única de arte. Se naquele momento buscava-se democratizar o acesso à cultura, o objetivo agora era transformar a cultura, e a Revolução Cultural chinesa e o líder Mao-Tse-Tung influenciavam milhares de jovens franceses com o “Livro Vermelho”.

Além da questão comportamental, a grande reivindicação da juventude francesa era por um novo modelo educacional, de autonomia universitária e de revisão da pedagogia ultrapassada que não mais se adapatava à realidade daquela juventude. Denunciava-se as relações de poder, questionava-se a função social do conhecimento (que ao que tudo indicava, estava em funçao do capital) e reivindicava-se uma autonomia pedagógica multidisciplinar, que permitisse a participação dos estudantes na construção do conhecimento – no Brasil, a luta pela reforma universitária também recebeu influência das manifestações francesas, mas acabou ficando em segundo plano em função de uma luta maior: contra a ditadura militar, como veremos adiante. Além disso, este conflito de gerações dentro da universidade também gerou a contestação do autoritarismo e conservadorismo que separava homens e mulheres dentro dos campi. Assim, a universidade seria palco das manifestações do simbólico mês de maio de 68, quando, “liderados” pelo alemão Daniel Cohn-Bendit, estudantes ocuparam a renomada Sorbonne, após a universidade de Nanterre, no subúrbio de Paris, também já ter sido ocupada. Entre as reivindicações protestavam contra a guerra do Vietnã, onde a brutalidade da intervenção servia de justificativa para o uso da violência nos atos de oposição à guerra. As barricadas tornam-se então símbolo da resitência estudantil, evidenciando em lemas como “barricadas fecham ruas mas abrem caminhos” o caráter transformador que aquele movimento buscava ter. O presidente De Gaulle não interveio com o exército nas ocupações na universidade, com receio de que os soldados, em sua maioria rapazes de classe média que cumpriam o serviço militar obrigatório, se incorporassem à luta dos jovens companheiros estudantes, evidenciando assim uma significativa diferença na dinâmica política dos outros países.

O maio de 68 na França tem prestígio e tornou-se emblemático para aquela época, muito talvez em função da tradição revolucionária de Paris. Entretanto, a luta pela reforma universitária e pela revolução cultural de 68 não devem ficar isoladas no tempo e no espaço: tiveram desdobramentos internacionais que, em novos contextos, duram até os dias de hoje.

Capítulo 1 - O mundo na década de 60

1 - O contexto mundial

[Guerra Fria]
Com o fim da 2º Guerra Mundial em 1945, foi instaurado no plano mundial um momento de tensão entre os dois maiores blocos políticos daquela época, que giravam em torno da União Soviética (URSS) e dos Estados Unidos, que haviam unido forças para derrotar a Alemanha nazista. Se no leste europeu tornava-se cada vez mais forte a proposta socialista da URSS, sob o regime totalitário de Joseph Stalin, do lado ocidental os EUA viviam um momento de grande crescimento econômico, e o capitalismo se consolidava como ordem social, econômica e política para os países a ele aliados. Este momento ficou conhecido como “Guerra Fria” pois a enorme tensão só não era maior do que o medo mundial de uma nova guerra que, com os avanços tecnológicos da indústria bélica dos últimos anos, terminaria em uma catástrofe nuclear. Assim, o conflito ficou durante muito tempo no plano ideológico, o que se por um lado acirrava a disputa pela hegemonia política a nível global, por outro acabou levando a intensos embates e reformulações a nível local, dentro da dinâmica dos próprios países. Assim, EUA e URSS iam conquistando aliados na construção de uma nova ordem mundial.

[ditaduras]
A grande quantidade de países sob ditaduras a partir da década de 60 refletia na população um sentimento de contestação daquela ordem, e mesmo nos países onde o regime não era ditatorial, a atmosfera repressiva parecia inquietar a população - principalmente jovens universitários, que viriam a ser os principais atores das transformações que estavam por vir. E, embora houvessem divergências a respeito do modelo político ideal e como este seria implementado, de um modo geral aquele momento demandava das pessoas uma tomada de posicionamento, que acaba por ser infiltrar em diversas esferas da vida: do trabalho ao sexo, tudo era político. O jornalista Alípio Freire afirma que “havia uma ditadura que, da mesma forma como perseguia o cabeludo, perseguia a moça liberada sexualmente e o militante de esquerda. Foi ela que politizou todo o movimento e colocou todos juntos nas passeatas pela democracia” .

[influências e o desejo de revolução]
Com a radiodifusão pela televisão que consolidava naquela época, a Guerra do Vietnã causou comoção mundial a partir do efeito midiático provocado pela veiculação das imagens do confronto, fazendo com que até a opinião pública norte-americana retirasse seu apoio à ação armada. Em diversos países, as manifestações contra tal intervenção provocavam choques entre a polícia e a população – em sua maioria jovens universitários – que também protestava contra os regimes totalitários em seus países. Alguns acontecimentos como a Revolução Cubana – especialmente nos países da América Latina, como o Brasil - tornaram-se referências comuns na época, unindo parcelas de jovens de diversos países por uma mesma causa: a revolução. Nas mais diversas bandeiras – políticas, sociais, culturais – a motivação era a crença orgânica no poder de transformação, a fim de revolucionar os modos de viver e de pensar da sociedade. Entretanto, as significativas diferenças na realidade social, econômica e política dos países fez com que aquela atmosfera em comum tivesse apropriações e desdobramentos bem diferentes em todo o mundo.